Mulher volta ao local onde cantava para o pai, isolado pela hanseníase
"Cantar era a única coisa que eu poderia fazer por ele e fiz", diz Jandira Gonçalves Silva, impedida de contato físico com Jésus na década de 30
Fotos: Samantha Ciuffa |
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Jandira Gonçalves da Silva: ela retorna ao Instituto Lauro de Souza Lima (antigo Asilo-Colônia Aimorés), onde costumava cantar para seu pai, Jésus Gonçalves (foto no final, em preto e branco) |
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Braços cruzados de Jandira Gonçalves da Silva |
O isolamento, o estigma, a quebra da convivência familiar, a ausência do abraço. A relação de Jandira Gonçalves da Silva com seu pai, Jésus Gonçalves, foi construída em meio à muita dor, mas fortalecida pelo amor e por encontros periódicos embalados pela música que ela entoava a pedido dele.
São lembranças de mais de 80 anos que foram rememoradas nessa terça-feira (25), quando Jandira retornou ao local onde visitava o patriarca da família. Diagnosticado com hanseníase, Jésus foi obrigado a se isolar, em 1933, no recém-inaugurado Asilo-Colônia Aymorés, onde hoje fica o Instituto Lauro de Souza Lima.
Foi quando Jandira, à época com nove anos de idade, viu sua família se despedaçar. A mãe, vítima de tuberculose, já era falecida e a pequena garotinha foi morar, com outros três irmãos, na casa de uma tia. Os recursos eram poucos, mas, sempre que possível, Jandira era levada para visitar o pai.
"Vinha no domingo e a visita ocorria à distância. Não podia pegar na mão, abraçar, beijar. Só podia olhar e conversar de longe. Os sadios choravam de um lado e os doentes choravam de outro", relembra, com lúcida memória do alto de seus atuais 94 anos.
Os encontros ocorriam em um parlatório, onde havia um balcão de concreto que separava, a muitos metros de distância, os internos e os familiares. Para tentar aplacar a impossibilidade do afeto, pai e filha, amantes da música, se conectavam por meio de canções da época.
No repertório, estavam sucessos de intérpretes como Ataulfo Alves, Altemar Dutra e Nélson Gonçalves. "Eu já estava mocinha, com uns 12 anos, e tinha voz boa. Era afinada. Eu nem bem chegava e meu pai pedia para eu cantar. Para atender a vontade dele, era o que eu sempre fazia. Minha boca cantava, mas meus olhos e coração choravam", relembra.
A breve apresentação, acompanhada por Jésus e seus amigos de isolamento, era seguida de aplausos.
"Então, eles pediam para eu cantar de novo e eu cantava, mas a visita não durava muito tempo. Já tinha que ir embora, se despedir e esperar a próxima vez que a gente conseguiria vir", conta.
A DISTÂNCIA AUMENTA
Jandira também tentava diminuir a saudade e a falta do pai na sua adolescência escrevendo cartas para ele. Mas era mesmo a música que tornava mágico aquele momento tão difícil das visitas, em meio a um momento da História permeado pelo preconceito com os doentes de hanseníase.
"Na escola, até meus irmãos e eu sofríamos. Éramos deixados de lado pelas outras crianças, que acreditavam que a gente poderia transmitir a doença, porque sabiam da situação do meu pai", lamenta.
Em setembro de 1937, acreditando que poderia encontrar a cura para sua doença, Jésus conseguiu mudar-se para o asilo-colônia de Pirapitingui, em Itu. E os mais de 250 quilômetros que separavam a cidade de Bauru tornaram os encontros familiares ainda mais escassos.
"Passados alguns anos, eu fui até lá pela primeira vez e vi que meu pai estava sem a metade do nariz. Deu uma tristeza... comecei a chorar e corri para abraçá-lo, sem lembrar que não podia. Foi doloroso".
Jandira já estava casada e chegou a fazer uma segunda visita ao pai. No ano em que ela teve a segunda filha, em 1947, Jésus morreu. Já bastante debilitado em razão da hanseníase, ele sucumbiu à doença aos 44 anos de idade."Ficou a saudade e a tristeza por não ter podido passar mais tempo ao lado do meu pai. Mas também fica a lembrança boa de ter levado alegria para ele. Cantar era a única coisa que eu poderia fazer por ele e eu fiz", completa.
QUEM FOI Nascido em Borebi no início do século passado, Jésus Gonçalves mudou-se para Bauru aos 17 anos. Trabalhou como tesoureiro da prefeitura e casou-se com Theodomira de Oliveira, viúva com duas filhas e com quem teve outros quatro filhos, incluindo Jandira. Além de funcionário público, também foi clarinetista na banda da prefeitura, diretor e ator de várias peças de teatro e articulista de jornais da época. Na década de 1930, Theodomira sucumbiu à tuberculose e, anos depois, Jésus casou-se com Anita Vilela, que batalhou e obteve o direito de cuidar e viver com seu marido no antigo asilo-colônia Aymorés. Mesmo com o diagnóstico de hanseníase e o consequente isolamento, Jésus manteve-se ativo. No asilo-colônia, fez muitos amigos e participou da criação de um jornal interno, de peças de teatro, de uma jazz band e de um time de futebol. Desenvolveu atividades semelhantes quando se transferiu com a esposa para o asilo-colônia de Pirapitingui, em Itu, onde liderou, inclusive, a implantação de uma estação de rádio que funcionou na cidade até o final da década de 1990. |